Anestesia
Plantas venenosas, gases tóxicos, o frio e até mesmo estados de coma provocados de propósito já serviram para driblar a dor
por Moacyr Scliar
Está na Bíblia, logo no comecinho, que, quando Deus resolveu criar a mulher a partir da costela de Adão, induziu o pobre homem a um sono profundo. Essa pode ter sido a primeira anestesia. Porém, Ele dá, Ele tira... Quando Eva comeu o fruto proibido, o mesmo Deus que poupou Adão condenou a pecadora “a dar à luz em meio a dores” (Gênesis, capítulo 3, versículo 16). A partir de então, a dor passou a ser parte da condição humana, algo que deve ser suportado e que pode ser até credencial para recompensas na outra vida. Entre os que não pensavam assim estavam não apenas os que sofriam na carne dores atrozes, mas também os primeiros médicos. Com eles nasceu a cirurgia e, com esta, a necessidade de aliviar as dores provocadas pelas rudimentares intervenções cirúrgicas. Começa assim a longa história da anestesia.
O termo, que vem do grego (an, sem; esthesia, sensibilidade) foi usado pela primeira vez por volta do ano 50 pelo médico grego Dioscórides, famoso por suas experiências com plantas. Ele descobriu que a mandrágora (um tubérculo, semelhante à batata) continha uma substância chamada hioscina, que possuía efeitos anestésicos. Mas, mesmo antes de Dioscórides, os gregos já conheciam o efeito anestésico de outras plantas, como o ópio, extraído da papoula, a maconha, extraída da Cannabis, e o meimendro. No século 4 a.C., o próprio “pai da medicina”, Hipócrates, usava a chamada esponja soporífera, que continha uma mistura de ópio e mandrágora, para colocar seus pacientes a nocaute. Depois, para acordar o coitado, recorria-se a uma esponja embebida em vinagre. A esponja soporífera continuou sendo utilizada até o século 17 e o ópio foi usado até recentemente, sob a forma de tintura ou láudano – uma mistura de ópio e álcool (este último, um soporífero tão antigo quanto Baco e o vinho)
Na América pré-colombiana já se conhecia e se utilizava a propriedade anestésica de certas plantas, por exemplo, com a mastigação das folhas de coca, que era conhecida no idioma quéchua como kunka sukunka (goela adormecida). Os jesuítas aprenderam a usar a coca para o tratamento da dor de dentes (isso muito antes que a substância fosse transformada, pela química, num poderoso narcótico). Com os índios, os europeus aprenderam o uso de uma outra substância anestésica: o curare, do qual falava o explorador sir Walter Raleigh já no começo do século 16. Essa substância, extraída da raiz da Strychnos toxifera, tem um efeito paralisante e relaxante sobre a musculatura, muito útil em cirurgias.
Bizarro, mas indolor
Mas nem só de plantas viveram os antigos anestesistas. Um dos métodos mais exóticos era utilizado em 1000 a.C. pelos médicos assírios. Eles comprimiam a carótida (a artéria que leva sangue para o cérebro) do paciente, provocando um transitório, e perigoso, estado de coma, durante o qual realizavam procedimentos cirúrgicos. A compressão de um nervo também diminui a sensibilidade: é aquela sensação que temos quando, depois de muito tempo sentados, percebemos que a nossa perna “dormiu”. Esse adormecimento era propositadamente provocado com o uso de um garrote apertado.
O frio é igualmente anestésico e era usado, em meados do século 16, por aquele que foi considerado o pai da cirurgia, o francês Ambroise Paré. Ele usava gelo ou neve para congelar as partes do corpo do paciente antes de operá-lo. Ainda no quesito bizarrices, um procedimento bem diferente foi aplicado por Franz Anton Mesmer, médico austríaco que, em meados do século 18, introduziu o chamado “magnetismo animal” – na verdade uma forma de hipnotismo – para tratar doenças e como método de anestesia.
Nenhum desses métodos, é claro, funcionava muito bem. Mas a verdade é que a cirurgia só era praticada em casos raros: amputação de membros, remoção de pedras na bexiga, retirada de tumores visíveis e volumosos. Operar dentro do crânio, do tórax ou mesmo do abdome era praticamente impossível. Em todos os casos, a qualidade básica do cirurgião era a rapidez. Ele tinha de lutar com a agitação dos pacientes, muitos dos quais eram amarrados. Os mais sortudos desmaiavam.
A situação mudou no século 19. Graças ao progresso da química, substâncias como óxido nitroso, éter, clorofórmio e morfina já estavam disponíveis. As drogas então podiam ser injetadas graças à seringa, inventada quase ao mesmo tempo pelo cirurgião francês Charles Gabriel Pravaz e pelo escocês Alexander Wood. As primeiras anestesias, no entanto, foram feitas nos Estados Unidos. Em 1842, Crawford W. Long usou éter num paciente cirúrgico. Em 1844, o dentista Horace Wells extraiu de si próprio um molar depois de inalar óxido nitroso. Esses eventos não foram bem divulgados e, assim, considera-se a data da introdução “oficial” da anestesia o dia 16 de outubro de 1846, quando, no Hospital Geral de Massachusetts, em Boston, ocorreu a sua primeira demonstração pública, com éter, realizada pelo doutor William Morton. Quatro semanas depois o médico Oliver Wendell Holmes, professor em Harvard, reintroduzia o termo “anestesia” no vocabulário científico.
O nascimento de "anestesia"
Celso Miranda
O médico escocês James Young Simpson foi o primeiro a aplicar clinicamente o clorofórmio como anestésico na obstetrícia. Em 1847, ele realizou o primeiro parto sem dor da história, para o terror dos cristãos mais fervorosos, que acreditavam que as dores do parto eram uma recomendação direta de Deus e que com isso não se deveria brincar. A mãe da menina, no entanto, ficou para lá de agradecida e batizou a criança (veja você) de Anestesia.
O clorofórmio logo caiu nas graças das mulheres e a própria rainha Vitória solicitou os préstimos de Simpson, que pôs no mundo os príncipes Leopoldo e Beatriz, os dois últimos filhos da soberana da Inglaterra. Ambos nasceram hemofílicos. Os adversários do “Doutor Clorofórmio” acusaram-no de causar o mal nas crianças, dizendo que um castigo de Deus se abatera sobre elas. Hoje se sabe que a acusação era bobagem.
O clorofórmio é sim um gás bastante tóxico, mas a hemofilia é uma doença hereditária e não há qualquer relação entre sua ocorrência e a exposição ao gás. Na época, porém, foi um baita revés para o doutor. Anos mais tarde, o clorofórmio seria substituído quase por completo por outros componentes de ação mais rápida e menos danosos.
Comentários
Postar um comentário