D. João VI, bobo muito do esperto - Cecília Costa




Por causa da proximidade do bicentenário da chegada de D. João VI ao Brasil, tenho lido alguns livros a respeito da vinda da corte portuguesa para o Rio, em 1808, debruçando-me prazerosamente sobre autores como Oliveira Lima, Oliveira Martins, Luiz Edmundo, Pedro Calmon, Armitage e Sergio Corrêa da Costa. E cada vez mais me deixo seduzir por D. João VI, o príncipe regente alçado rei, em 1816 — após a morte de sua mãe, a rainha D. Maria I —, que costuma ser caracterizado como um grande palerma e que de palerma nada tinha. Tanto que alguns historiadores e contemporâneos, entre eles vários diplomatas ingleses, chegaram a dizer que tratou-se, naqueles tempos conturbados, do único homem que conseguiu enganar Napoleão, quando o corso ainda se encontrava com as rédeas do poder europeu nas mãos.

D. João VI não foi criado para governar. Seu irmão mais velho, D. José, foi quem recebeu educação de príncipe regente e de futuro rei de Portugal. Bonito, falante e cheio de idéias na cabeça, D. José, no entanto, morreria, aos 26 anos, de varíola, deixando viúva sua tia e esposa Maria Benedita de Bragança. Sua morte, assim como a de seu pai Pedro III e a de sua irmã Mariana, foi uma das causas do enlouquecimento de sua mãe Maria, além da religiosidade extrema e do morticínio de nobres na Revolução Francesa.

Morto o irmão, em 1788, D. João, rapaz pensativo e tranqüilo — que gostava de música de igreja (cantochão) e de livros —, viu-se no meio de um vendaval, sendo obrigado a encerrar o capítulo tranqüilo e preguiçoso de uma existência retirada, em mosteiros, na qual o único entretenimento eram alguns passeios a cavalo por Lisboa e idas ao teatro.

Enquanto D. José estava vivo e ele era apenas o segundo na linha de sucessão, nem mesmo o casamento com a espevitada e feiosa infanta de Espanha, Carlota Joaquina, o abalara muito. Casara-se aos 18 anos, em 1785, muito a contragosto, com a meninota sapeca, cheia de energia e de língua afiada, mas como a filha de Carlos IV só tinha, na ocasião, 10 anos, o casalzinho real teria que esperar pelo menos uns três a quatro anos até que as núpcias saíssem do papel para o leito. E nosso D. João, neste ínterim, podia continuar com seus devaneios, leituras e exercícios musicais. Sem José, no entanto, o mundo caiu. Seria rei um dia. Chorou. E este dia não demorou muito, porque a mãe, considerada louca de pedra e cal, foi afastada do poder e, em 1792, o então príncipe do Brasil já se viu obrigado a lidar com ministros e diplomatas, passando dos bastidores de Queluz e Mafra para a boca de cena do reino de Portugal, como regente todo-poderoso.

Ao contrário do irmão, não era nada bonito. Nunca o fora. Gorducho, de lábio caído, com pernas inchadas. Mesmo assim, ele e sua mulherzinha bem mais jovem tiveram uma filharada. Dizem, é bem verdade, que alguns dos nove filhos não eram dele.

A sensualíssima espanhola, amante das castanholas andaluzas e de festejos barulhentos, ao ganhar corpo e um pouquinho de maturidade, bem cedo cairia na boca do povo como uma grande traidora, perigosa e lasciva. Mas D. João não ligou para os comentados galhos na cabeça. Reconheceu todos os reais rebentos, até mesmo Miguel, o filho homem caçula, que, segundo a crônica popular era filho de um outro João, bem menos honroso.

O que aborreceu mesmo nosso príncipe regente foi uma outra traição da mulher, o desejo de tirá-lo do trono e de se tornar rainha, lá pelos 20 anos, quando, deprimido, o esposo abandonara os negócios reais e se refugiara no Alentejo, em busca de calma e recuperação, física e mental. A traição foi abortada, em 1795, com o auxílio de leais súditos portugueses, como os Lobatos e Tomás Antonio, mas nunca mais o casal seria um casal, nem mesmo quando temporariamente morassem sob o mesmo teto.

O ódio e a suspeição se instalaram entre eles, com o pífio relacionamento, brinquedo quebrado, não tendo mais conserto.

Foi assim, meio que destruído por dentro, devido às perfídias da mulher ambiciosa, que D. João transmigraria para o Brasil. Só que aqui, no Brasil, tudo mudaria. Seria amado pelo povo e adoraria o Rio, não se importando em nada com o calor, os mosquitos, a falta de comodidades e requintes peninsulares . Já sua mulher, que a cada ano que passava ficava mais rancorosa, de cara feia rejeitou o Brasil e, por conseguinte, foi, por seus novos súditos, também rejeitada.

De certa forma, ao fugir para colônia, que logo, logo, transformaria em Reino Unido, colocando-a à altura da metrópole, D. João pregara uma peça não só em Napoleão, mas também em Carlota Joaquina. Pois enquanto ela aqui se sentiria sempre uma exilada, suspirando por seu paraíso perdido (Portugal e Espanha), o tolo do marido, comilão de frangos tenros, mal-ajambrado e eternamente sujinho — não gostava mesmo de banhos — se fez rei. Um grande soberano absoluto, benigno, generoso, muito à vontade em sua nova pátria, que tão alegremente o acolhera. Até rosas jogaram sobre ele quando aqui chegou no início de março de 1808, após ter aberto os portos para os estrangeiros e nações amigas em sua parada na Bahia.

Até aí, tudo bem. A historinha é interessante. Mas onde está a verdadeira sabedoria de D. João, o fujão? Quase todos os historiadores que li são unânimes em dizer que, se D. João não tivesse vindo para o Brasil, Portugal cairia nas mãos dos franceses e dos ingleses, sendo dividido em pedacinhos, e não apenas Portugal, mas a dinastia dos Bragança.

Com sua fuga, aparentemente tão vil, o filho de Maria, a louca, e marido de Carlota, a histérica conspiradora luxuriosa, não só preservou para si mesmo seu próprio cetro, como também abriria o caminho para dois descendentes legítimos, que foram longevos governantes reais: D. Maria II, de Portugal, filha de Pedro I, e D. Pedro II, no Brasil. Além disso, evitou que o Brasil caísse nas mãos dos ingleses. Pois, caso ficasse em Lisboa, se submetendo ao bonapartiano general Junot e a seus soldados, os diplomatas do rei George já tinham avisado que se apossariam da colônia, principal fonte de riqueza da metrópole dependente e sugadora.

Dizem também que aqui no Brasil D. João VI sempre foi muito sábio na escolha de seus ministros. Entre os quais se destacaram, sobretudo, Rodrigo de Souza Coutinho, o anglófilo Conde de Linhares; Antonio de Araújo, Conde da Barca, amigo dos franceses, e o grande diplomata Pedro de Souza Holstein, Duque de Palmela, que na juventude fora amante de Madame Stäel. Com seu ar bonacheirão, bondoso, e falsamente néscio, ele os mantinha sob rédeas curtas, fazendo sempre o que apenas queria.

E ainda bem, para todos nós, que entre os seus desejos estava o de transformar a acanhada corte tupiniquim , o mais rápido possível, numa sede eficiente e funcional, com artes, ciências, museus, jardim botânico, imprensa, biblioteca, arsenal da marinha, escolas de medicina, estradas, ruas calçadas, coleta de lixo, correio, polícia eficiente, indústria, provisão de alimentos. Não, o homenzinho de burro nada tinha. Na diplomacia, gostava de ganhar tempo. Mas sabia o que fazia com o tempo que ganhava.

Sem nunca revelar realmente o que estava a pensar, à toda hora D. João VI procurava se manter o mais informado possível, num tempo em que a informação vinha por boatos, cochichos, conciliábulos e epístolas, postadas em navios. Demorando meses, ou minutos, distantes ou próximos, os fatos, bons ou ruins, sempre acabavam por chegar ao ouvidinho de nosso querido rei, que, ao ter a louca idéia de atravessar o Atlântico com 60 naus e 15 mil cortesãos, mudaria o Brasil para todo o sempre. Além, é claro, de o tornar independente. Pois, filho, no que diz respeito a esta inevitável independência, “antes seja para ti, que me hás de respeitar, do que para algum desses aventureiros”.


A bisbilhoteira duquesa de Abrantes



São muitas as fontes empregadas pelos historiadores para recriarem os tempos de D. João VI, o “Rei clemente”, em Portugal e no Brasil: diplomatas, cortesãos, funcionários, visitantes estrangeiros, militares, almirantes. Impressionante o número de memórias, diários, correspondências e depoimentos que foram escritos na virada do século XVIII para o XIX, com vários nobres ou pessoas cultas tendo desejado deixar para a posteridade o testemunho da época na qual viveram. Uma turbulenta época esta, marcada por uma revolução sanguinolenta, pelas investidas de um ambicioso aventureiro corso, a retomada de poder pelos reis absolutistas, um Congresso em Viena, cartas constitucionais e um tumultuado processo de independência das colônias das Américas.

Entre estes depoimentos, um que sempre é citado é o de Laura Junot, a duquesa de Abrantes, cujo marido, após ter sido embaixador em Portugal, liderou as tropas bonapartistas que cruzaram os Pirineus e chegaram a Lisboa em fins de 1807, exatamente no dia em que D. João VI fugira, pela manhã, ou seja, o dia 29 de novembro. Contam que Junot chegou a ver ao longe os mastros de alguns dos navios da frota do rei fujão. Tarde demais. Os ingleses protegiam a corte que se transladava, sendo impossível trazê-la de volta.

Tudo isso Laura Junot viu. Tudo isso ela contou em suas memórias: a primeira estadia do marido em Portugal, ainda como embaixador, tentando fazer D. João ceder aos caprichos de Napoleão,e, posteriormente, a volta invasora e a fuga de 15 mil pessoas, agarradas a pratos, pratas, castiçais, candelabros, lençóis, arcas com roupas, santinhos, livros, quinquilharias.

Não há quem não cite “As memórias da Duquesa de Abrantes”, os perfis que traçou do príncipe regente de Portugal, de sua espanhola mal-intencionada, sua mãe louca, seus nobres. Só que não foi Laura, apesar de ser extremamente arguta, observadora e inteligente, quem escreveu as memórias, in totum. E essa é, a meu ver, a melhor parte desta história.

Já viúva de Junot (o marido se suicidaria em 1813), a bela francesa teve uma ajudazinha em seus textos memorialistas. Uma ajudazinha, não; na realidade, uma grande, esplendorosa ajuda. Que fez com que suas observações se tornassem eternas, do ponto de vista histórico. Pois quem auxiliou a viúva do general de Napoleão a contar tudo o que vivera e viu foi nada mais, nada menos, do que o jovem chamado Honoré de Balzac.

Apaixonado loucamente pela bisbilhoteira de salões, franceses e portugueses, Balzac, a fim de conquistá-la, a estimularia a escrever as memórias, aceitando o papel de ghost-writer, ou, ao menos, de bom palpiteiro e revisor de textos. Com isso, Laura se consagraria como escritora, não só na França, mas em toda a Europa. Quando rompeu com Balzac, dizem, nunca mais escreveria tão bem o quanto havia escrito nos ricos tempos literários em que o autor de a “Comédia Humana” fora seu amante.

Algumas frases de Laura Junot

“A adulação é uma moeda que empobrece quem a recebe.”
“A virtude das mulheres é areia movediça.”
“Em matéria de virtude feminina, verdade e fama não costumam andar juntas.”
“As mulheres fazem as piores loucuras para acender uma paixão e fogem correndo diante do incêndio.”
“Temos pouco amor-próprio quando o recusamos ao outro.”

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