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Córdoba – Argentina

Nunca tinha feito isto antes. Mas eis que aparece uma promoção relâmpago de vôo noturno GOL/Smiles com apenas 12 mil pontos ida e volta em um fim-de-semana que seria meio parado em SP…  Não pensei nem meia vez. Aqui estou, na segunda maior cidade da Argentina: Córdoba. Entre a decisão e o embarque passaram-se apenas 5 horas.
Córdoba, com seu 1,5 milhão de habitantes é a segunda cidade da argentina e capital da  Província de Córdoba, que tem algo em torno de 3 milhões de habitantes, atrás apenas da Província de Buenos Aires, que concentra 1/3 da população argentina. Fica bem no coração do país, na zona de transição entre as planícies dos rios Prata, Paraguai, Paraná e os Andes, assim como também é ponto de passagem para o norte pobre da Argentina. Este mapa, oficial argentino, é engraçado: colocam as Malvinas/Falklands como parte da Província da Terra do Fogo e incluem um pedação da Antártica…
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E aqui tem um patrimônio da humanidade – razão de eu ter vindo para cá.
Trata-se do Quarteirão Jesuíta e 5 Estâncias Jesuítas todas aqui ao redor da cidade, inscritos em 2000, um dos 8 PH que Argentina tem. É o meu terceiro patrimônio neste país e os outros cinco são bem interessantes e relativamente acessíveis, com exceção apenas da Cueva de las Manos, que fica em uma área remota da Província patagônica de Santa Cruz (terra dos Kirchner).
O que a UNESCO reconheceu aqui foi uma parte do centro da cidade, chamada de Manzana Jesuítica e mais 5 estâncias, fazendas, espalhadas pela região. “Manzana” é uma palavra espanhola que significa “maçã”, mas também “quarteirão”, “quadra”. E as estâncias são antigas fazendas onde atividades ligadas aos jesuítas eram desenvolvidas. A idéia é visitar 4  destas estâncias.  
Antes, porém, vou falar da razão de a UNESCO ter voltado os olhos a esta região argentina. Assunto para o próximo post.

Quarteirão e Estâncias Jesuítas de Córdoba – PH n.º 88 – 1.ª parte

A Companhia de Jesus foi fundada por S. Inácio de Loyola no contexto da contrarreforma católica, tendo sido aprovada pelo Papa Paulo III em 1540. A Companhia desempenhou um papel fundamental na reconquista de áreas aos protestantes na Europa, assim como em evitar a sua propagação em Portugal, Espanha e Itália. Além deste papel em solo europeu, a Companhia de Jesus lançou-se aos mares em um esforço de evangelização que atingiu América, África e Ásia. O mais famoso missionário jesuíta foi S. Francisco Xavier que chegou à Índia, Indonésia, Malásia, Japão e China.
Na América, os jesuítas chegaram relativamente tarde. Antes vieram os dominicanos e franciscanos que se ocuparam de regiões mais desenvolvidas na América Espanhola, como o México, o Caribe e o Peru. Aos jesuítas restou a parte sul do continente, onde a Espanha, até então, tinha menos interesse porque era região sem riquezas minerais. Ocuparam-se, assim, de onde hoje é a Argentina, o Paraguai, o Sul do Brasil (atuando também em terras portuguesas) e o Leste da Bolívia.  Não custa lembrar que foram jesuítas os fundadores da cidade de São Paulo (Beato Anchieta e Manuel da Nóbrega).
Onde hoje está Córdoba era o extremo sul do mundo conhecido nos últimos anos do séc. XVI. Os jesuítas chegaram a Córdoba e receberam um parcela de terra bem no centro da cidade, onde construíram logo sua igreja – que é, original, a mais antiga da Argentina –, e, como não podia deixar de ser, construíram um centro educativo, que posteriormente se transformou na primeira universidade argentina. Os jesuítas eram muito ligados à educação, até porque S. Inácio de Loyola era uma pessoa que tinha recebido instrução superior.
Os jesuítas sempre tiveram uma postura bastante autônoma em relação à Coroa e buscavam financiar-se a si próprios e custear as escolas que mantinham. Para isto, adquiriram várias fazendas na região de Córdoba, onde produziam vinho, produtos agrícolas, couro, animais de carga, etc. que eram vendidos às regiões mais ricas como o Peru e a Bolívia. Além da função econômica, estas “estâncias” funcionavam como centros propagadores do cristianismo e da educação.
Os jesuítas foram expulsos de todas as terras espanholas no final do século XVIII (por volta de 1767). Uma das principais razões foi exatamente a autonomia que sempre mantiveram, bem como a prosperidade que atingiram aqui, o que preocupou a monarquia espanhola, que os considerava pouco submissos e leais em excesso ao Papado. Além disto, o final do séc. XVIII foi muito turbulento e de grande risco para os regimes absolutistas da Europa (a Revolução Francesa aconteceu em 1789), de modo que tudo convergiu para que o Rei da Espanha resolvesse expulsar os jesuítas da América espanhola (também do Brasil foram expulsos).
O quarteirão jesuíta em Córdoba e suas 5 estâncias na região de Córdoba foram reconhecidos pela UNESCO como patrimônios da humanidade para homenagear esta importante contribuição que os jesuítas deram para esta parte da Argentina, especialmente na educação e na defesa dos indígenas, que eram catequizados em sua língua própria – que os jesuítas se esforçavam em aprender (isto também aconteceu no Brasil – o Beato Anchieta falava fluentemente o tupi-guarani e escreveu a gramática da língua).
Em Córdoba estão a Igreja da Companhia – com sua fachada sóbria e seu interior deslumbrante com trabalhos em madeira policromada. O teto chama a atenção por lembrar forma de um barco, inspiração do seu arquiteto, um padre holandês que havia sido construtor de barcos.
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Também é bem bonita a Capela Doméstica, que fica ao lado, em especial pelo teto pintado em madeira no estilo cusquenho. Aliás, a influência da arte cusquenha (originária de Cusco, Peru) é notável, inclusive pelos motivos florais típicos da América.
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O que mais gostei, porém, foi o passeio guiado pela Universidade, claustro, salas, acervo, com um guia exclusivo e excelente. Uma das formas de se entrar na Universidade é pela própria Catedral, o que demonstra a ligação que os jesuítas faziam entre educação e religião.
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Lá estão alguns exemplares raros de bíblias impressas (do séc. XV), muitos mapas cartográficos da época dos descobrimentos, etc. A Universidade foi tomada aos jesuítas ainda na época de sua expulsão e hoje pertence ao governo federal argentino. É, ainda hoje, uma das mais importantes do país e Córdoba é uma cidade inegavelmente universitária – herança jesuítica.

Estâncias Jesuítas – PH n.º 88 – 2.ª Parte

Como já mencionei, os jesuítas adquiriram ou receberam em doação algumas fazendas nos arredores de Córdoba e nelas tinham a finalidade de produzir recursos econômicos para manter suas escolas na cidade.
Nas estâncias trabalhavam escravos negros e índios. De acordo com o que se compreendia na época, aos índios era reservado um papel superior aos escravos africanos – os índios não eram escravos, mas “servos” e cuidavam de tarefas menos pesadas como agricultura e trabalho nas vinhas. Aos negros restava o trabalho mais duro como a construção civil e o trato com o gado.
As estâncias foram tomadas pela Coroa espanhola logo após a expulsão dos jesuítas. Em seguida, foram vendidas para famílias ricas da Espanha e os jesuítas, mesmo após a volta à Argentina (em meados do séc. XIX), nunca mais as recuperaram.
Hoje todas pertencem ao Estado, com exceção de uma – a de Santa Catalina – que ainda está nas mãos da família Díaz. Acho que é um caso raro de um patrimônio da humanidade “privado”.
A primeira estância visitada foi a de Jesús María, que fica ligeiramente fora da cidade de Jesús María na Província de Córdoba. A parte que se pode visitar é o pátio cercado por habitações e áreas de serviço, que contam a história dos jesuítas, além de exposição de objetos da época, arte religiosa e quadros pintados à moda cusquenha à venda. Os preços estavam bem atrativos, as obras eram lindas – apesar de que as que eu mais gostei já constavam como vendidas – mas como levar isto no avião, com as molduras pesadas de madeira? Acabei deixando. A igreja de Jesús María tem uma modesta cúpula que se pode ver desde o Coro. O conjunto igreja, claustro e jardins, tudo praticamente original, tornou o passeio muito interessante. Estava sozinho o tempo todo lá, o que facilitou a idéia de “voltar no tempo” para imaginar como seria a vida aqui nesta estância. Em Jesús María desenvolvia-se agricultura e gado de corte. Destacava-se, porém, na produção vinícola.
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De lá, para a estância de Santa Catalina, a tal que pertence à família Díaz. Lá chegando, uma decepção: como os familiares estavam curtindo o fim-de-semana, apenas a igreja poderia ser visitada. A igreja é a mais imponente de todas nas estâncias e está muito bem cuidada. Na época dos jesuítas, Santa Catalina servia principalmente para a produção de gado muar (mulas, burros, etc), imprescindíveis para o trabalho nas minas de prata de Potosí, na Bolívia. A visita, mesmo limitada à igreja, dependia de um guia. O guia  – empregado da família Díaz – estava com notável má vontade de fazer o trabalho. Poucas informações e um discurso irritante reclamando da UNESCO, que não teria feito nenhum aporte direto de dinheiro à estância (?!). Eu não me segurei e disse-lhe que se os proprietários se dispusessem a permitir que o local fosse bem visitado, muito mais gente viria, e assim, também viria mais dinheiro. Enfim, acho que propriedade privada e patrimônio da humanidade são duas expressões que não casam bem.
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De lá, para uma agradável surpresa, a estância de Caroya. É a menos visitada de todas por ser muito simples, inclusive a igreja que é uma mera capelinha austera. Gostei de Caroya porque, apesar de as construções serem simples, estão muito bem explicadas em painéis. Serviu esta estância na época dos jesuítas como “colônia de férias” para os estudantes de Córdoba e, depois, como fábrica de armas brancas, sendo, ainda, um albergue para os imigrantes italianos no final do séc. XIX – imigrantes vindos em especial da região Friuli.
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Por último, a estância de Alta Gracia. A que mais gostei. O padrão é o mesmo de sempre: uma igreja, um pátio, os claustros e as áreas de trabalho. Aqui, há um moinho e um dique construído pelos jesuítas e que hoje é um belo lago. O grau de preservação de todo o conjunto arquitetônico é impressionante e muito pouco mudou desde que os jesuítas se foram. Alta Gracia é uma cidadezinha onde muitas famílias ricas de Córdoba costumavam ter casas de fim-de-semana, pois é um lugar com clima muito agradável, aos pés das serras da Província de Córdoba.
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Enfim, foram visitadas 4 das 5 estâncias reconhecidas pela UNESCO. A que faltou, Candelaria, fica em uma área de difícil acesso e acho que ir lá seria mais do mesmo.
Cabe um último comentário e um resumo da história: são 5 os locais tombados como PH na América do Sul relativos aos jesuítas, inclusive um no Brasil. Córdoba se diferencia no sentido de que aqui não sem implantaram as “reduções”, destinadas à catequese, organização social e defesa de comunidades indígenas. A principal atuação dos jesuítas em Córdoba, assim, era a educação – dirigida aos espanhóis e aos criollos (descendentes de espanhóis nascidos na América). E, para manter estes centros educacionais, tinham as estâncias para gerar renda.

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