Henrique Paulo Schmidlin = Vitamina



Não insista em chamar de senhor este jovem montanhista de 80 anos. Incansável, Henrique Paulo Schmidlin, curador do patrimônio natural do estado desde que a função foi criada (no final dos anos 80), vai repetir quantas vezes for necessário “senhor não, você”. Nem combina com ele tamanha formalidade, logo se percebe. Primeiro porque não é homem de muita cerimônia. Segundo: só a sabedoria e o cabelo, transparente de tão branco, entregam a “bagagem” que ele tem.

Henrique Schmidlin fez da Serra do Mar o seu quintal. O octogenário não se queixa de cansaço. Nem faz discursos raivosos. Popular e bem humorado, virou o senhor que todo moleque sonha ser




“É o dr. Emmett Brown”, brinca o filho Paulo Henrique, 28 anos, comparando a imagem do pai – cabelos ao vento no alto do morro Rochedinho – com o cientista do filme De volta para o futuro. Schmidlin até tem um pouco do jeito inquieto do inventor do carro que servia de máquina do tempo naquela película. Mas a agilidade com que anda pelas trilhas da Serra do Mar mais faz pensar no menino que corria pelos morros durante as férias, em Bocaiúva do Sul, imaginando-se um personagem dos livros de aventura de Karl May, junto com os primos da Colônia Abranches.

Bendita mania que Luzia Agathe Barz tinha de passar o dia caminhando. Levava os filhos e a meninada da vizinhança do Campo do Paraná (hoje o Centro Cívico de Curitiba) para fazer piquenique com capilé da Cini misturado na água do rio, no Cascatinha. “Eles podiam correr, subir e descer barranco e se sujar”, conta ela, aos 97 anos. Fez tudo parecer perto, um pulo.

Talvez por isso tenha soado como convite o cartaz que os padres pregaram na parede do seminário, em meados da década de 1940. Esboçaram uma montanha, com pouco mais de um metro de altura, e estamparam um “Marumby” na parte de cima – referência de grande feito a se alcançar. Ali, subia-se por meio de arrecadação de doações para o internato. Com medo de ir para o inferno, Schmidlin se empenhou em juntar uns bons trocados para a instituição. “Mas o que ficou na minha cabeça foi aquela imagem da montanha”, confessa.

Demorou pouco para o mais velho dos três filhos de dona Luzia se juntar a Rody Janz, um amigo de escola, e chegar ao cume daquele que era considerado à época o ponto mais alto do Sul do Brasil. “Subimos por um cabo de aço que foi colocado devido à rampa forte que era. Mas, como não somos gente da Rua 15, tudo foi fácil e, de fato, o perigo a gente não percebia por causa da escuridão”, descreve o relatório que ele fez sobre a viagem do dia 11 de outubro de 1947. Foi só a primeira vez.

Parece até providência divina a história do tal cartaz. O Ma­­­­rumbi [na grafia atual] só ganhou com a presença de Schmidlin. Há um pouco dele em boa parte daquele pedaço de Paraná próximo a Morretes: no incentivo à criação do parque, que ele foi ao Rio de Janeiro solicitar; na sinalização e manutenção das trilhas; na mochila, bota e outros equipamentos antigos de escalada que estão no museu em frente à estação de trem; na maquete do conjunto de montanhas, que ele mesmo fez com ferragem e cola; e até no boia-cross, que ele batizou e ajudou a normatizar.

Henrique Paulo Schmidlin virou tão homem da montanha que teve de fazer uma troca. “Perdeu” o nome. Em ritual comandado pelo veterano Rudolf Stamm, meteu goela abaixo uma colherada de sal, sem direito a uma gota de água. Passou no tradicional teste de resistência e nasceu de novo: Vitamina. Culpa do hábito de levar para o acampamento frutas e verduras, enquanto os outros preferiam pães e enlatados.

Há um tanto de super neste Henrique. Tem um quê de herói quando o assunto é meio ambiente – sempre engajado na educação, legislação e tombamento para conservação dos recursos naturais (como Supe­­­ragui e Ilha do Mel, por exemplo). E é superlativo em outros aspectos: inteligente, dedicado, divertido, atencioso e disposto. “Deste, você não conhece dois iguais”, resume bem o advogado criminalista Dálio Zippin Filho, amigo de cinco décadas. “Tem outro ponto forte: é excelente conciliador”, acrescenta.

A lista de atividades que Vita (na versão mais curta do apelido) tem no currículo é de deixar sem fôlego até o mais condicionado dos seres. De montanhista de carteirinha, ele passou a desbravador. Não havia fim de semana que não estivesse enfiado em algum canto novo da Serra do Mar, ou inventando com os colegas de montanha uma trilha alternativa para alcançar cumes já conhecidos. Depois, arriscou-se a navegar. Estudou cálculos e navegação astronômica e velejou boa parte da Costa Brasileira sem nunca ter tido um barco. “Eu tinha três propriedades importantes: era bom navegador, cozinheiro e mergulhador. Não me faltava emprego”, orgulha-se. Teve também o ciclismo, o parapente e o mergulho – com equipamento desenvolvido por ele em dupla com o pediatra Raul Carneiro Filho, usando os conhecimentos de mecânica fina que o pai ferrageiro, Paulo Francisco Schmidlin, havia lhe ensinado.

E Vitamina ainda foi bancário, assessor jurídico, administrador de imóveis, instrutor de sobrevivência, voluntário no controle de incêndio e buscas na mata, colunista de jornal, historiador (é uma referência no tema tropeirismo), militante político, presidente de federação, e por aí vai. É de fazer pensar que essa figura, além de extraordinária, é mágica: capaz de fazer um dia render 36 horas. É paixão, ele diz. “Sou passional. Estudo a fundo tudo que gosto de fazer”, simplifica.

Tudo isso está registrado: 80 anos de vida em 36 volumes de diários encadernados, guardados em um quartinho, no fundo de casa, junto com uma variedade de impressos, recortes e livros. Anotações feitas em cadernetas que viram relatórios na inseparável máquina de escrever Hermès. Relatos, sem introspecção, mas recheados de desenhos, mapas, fotos. Feitos para serem lidos, como as 12 páginas que contam aquela primeira subida aos 1.539 metros do Olimpo. “O Rody passou mal de frio, pois só tinha um blusão de manga curta e uma coberta fina, de modo que deixo a critério dos leitores calcular o frio que ele passou”, fala um trecho, com um desenho do amigo ao lado.

Vita tem energia para muito mais. Dá para saber só de olhar. De capacete de moto a tiracolo, chave pendurada no pescoço, celular preso por cordão à cintura para não cair, pochete e botas de montanhista, ele parece pronto para a próxima aventura. Se a ocasião for mais formal, saca de uma caixa uma de suas gravatas borboletas, sua marca registrada – mais prática, impossível.

Há grandes planos já para 2011. Vita garante que deixa no fim do ano o cargo de curador. Quer se dedicar aos dez livros que há tempos tem planos de escrever – a maioria sobre história –, e fazer uma viagem de alguns meses com a mulher, Dulcinea de Souza Sch­­midlin, a Dulci, pela parte espanhola da América do Sul. Quando voltarem, só falta arranjar um carro mais apropriado para expedição mais longa: um ano percorrendo o Brasil de ponta a ponta.

Dona Luzia, com uma lucidez admirável para os seus quase 100 anos, encara com naturalidade a vitalidade do filho. “Não faz mais do que a obrigação”, diz, “se tem saúde é para usar”. Alguém se atreve a contrariar?

Família tardia

Henrique era o primeiro da fila. Foi o que a estudante do 3º ano de Direito, estagiária no escritório de Dálio Zippin Filho, ouviu. Dulcinea de Souza Schmidlin havia acabado de romper um noivado. “Ele chegou para mim, perguntou se eu estava solteira e, quando eu confirmei, avisou: então sou o primeiro da fila”, conta.

Namoraram um ano sem que Zippin percebesse. “E eu achando que ele vinha todo dia para me visitar”, diverte-se o amigo. Em 1976, já estavam morando juntos. Era tudo que a mãe dela não sonhava: um homem 21 anos mais velho, que já havia vivido com outras mulheres, mas que nunca foi casado no papel. Pois não poderia ter dado mais certo.

Em 1980, nasceu Lucia Agathe Juliana Schmidlin. Os dois casaram um ano depois, com a filha de daminha. Mais um ano, e veio Paulo Henrique, outro que virou montanhista.

Os dois filhos escolheram ser biólogos. Por quê? “Acho que pelo convívio com a natureza, porque eu nunca forcei nada”, avisa Vitamina. Lúcia era também a parceira de tango do pai. Quando ela morreu de câncer, há dois anos, a casa ficou mais vazia. “Há dores que se supera só, não se pode repartir”, desabafa Vita. Mesmo com a saudade, aquele ainda é um lar feliz.

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