Soporíferos: o vício oculto do Reino Unido


LAURA BARTON DO "GUARDIAN"


No ano passado, 15,3 milhões de receitas para soporíferos foram passadas pelos médicos do Serviço Nacional de Saúde (NHS) britânico. Pacientes ingleses receberam 5,4 milhões de receitas de zopiclone e 2,8 milhões de temazepam, os dois soporíferos mais populares. De acordo com o Conselho de Pesquisa Econômica e Social britânico, 10% da população do país usa alguma forma de soporífero regularmente.
Mas, na semana passada, um conhecido especialista em sono -- Kevin Morgan, professor de gerontologia na Universidade de Loughborough -- argumentou que o NHS deveria considerar alternativas aos soporíferos, e treinar sua equipe para oferecer terapias psicológicas tais como a terapia cognitivo-comportamental (TCC), para ajudar as pessoas que sofrem de insônia. Morgan argumenta que a TCC oferece melhor solução em longo prazo, e que os soporíferos apresentam perigos adicionais: vício ou dependência, acidentes relacionados à medicação e custos em disparada para o serviço de saúde.
O quanto é difícil abrir mão dos soporíferos? Nosso desejo de nos medicarmos dessa maneira é parte de nossa preocupação mais ampla com o sono. Sono e sexo talvez sejam as duas maiores preocupações das pessoas em termos de quantidade -- será que tenho o bastante, e o que eu deveria fazer para conseguir o quanto desejo disso? No começo do ano, a Nuffield Health reportou que os adultos do Reino Unido "perdem" 378 milhões de horas de sono por semana, já que os respondentes de sua pesquisa dormem em média 7,1 horas por noite. A organização enfatizou que isso equivale a "muito menos" que as oito horas diárias de sono recomendadas. A ideia de que não estamos conseguindo o número desejável de horas de sono alimenta a ansiedade a esse respeito.
SONO INDUSTRIAL
Em 2006, a revista "Forbes" publicou um artigo intitulado "A Máfia do Sono", detalhando os bilhões gastos em colchões, travesseiros, ervas que ajudam a dormir, odorizantes que facilitam dormir, sais de banho soporíferos e outros produtos, a cada ano. As empresas cada vez mais tentam explorar nossa preocupação quanto ao que pode acontecer caso não durmamos o suficiente. Ao que parece, isso engorda, quadruplica o risco de derrame e aumenta as chances de acidentes de carro. Recentemente, a Academia Americana de Medicina do Sono reportou outro impacto da insônia: ela eleva o número de glóbulos brancos no sistema imunológico, uma reação semelhante à que o corpo sofre em caso de alto estresse.
O efeito sobre o corpo é perceptível depois de apenas uma noite mal dormida: uma pesquisa com tomografias cerebrais conduzida pela Universidade da Califórnia demonstrou que a amígdala cerebelosa, área do cérebro responsável pelas respostas emocionais, reage de maneira excessiva quando exposta a imagens incômodas ou perturbadoras, depois de uma noite insone. Esse estresse emocional logo se traduz em estresse físico, o que afeta o sistema imunológico e resulta em inflamação. A Associação Cardíaca Americana constatou que dormir menos de seis horas por noite eleva em 25% a presença de substâncias inflamatórias no sangue, e também a pressão sanguínea e os batimentos cardíacos, e afeta os níveis de glicose. Se isso persistir por algum tempo, pode resultar em artérias endurecidas e risco aumentado de infecção.
Diante disso, será que os soporíferos são realmente tão terríveis? Será que não funcionam por realinhar nossos padrões de sono, rompendo o círculo vicioso da insônia? "Eles têm seu lugar no tratamento", diz o Dr. Andrew Hall, consultor de medicina do sono e membro da Sociedade Britânica do Sono, "especialmente para problemas agudos como reações de pesar, quando receitá-los pode ser uma decisão humanitária".
O professor David Nutt, diretor da unidade de neuropsicofarmacologia do Imperial College, vai além: "A esperança é que os soporíferos ajudem a pessoa a retomar a rotina do sono", diz. "Algumas pessoas, por motivos genéticos ou estresse, têm problemas persistentes para dormir, e algumas delas precisam de soporíferos em longo prazo."
Mas, apesar de nossa crescente dependência quanto ao sono medicado, resta uma suspeita social residual quanto aos soporíferos -- alimentada, talvez, pelas recordações quanto aos barbitúricos (o uso dos quais começou a recuar nos anos 70 e 80) e pela imagem de donas de casa transformadas em zumbis por conta do Valium.
CAMUNDONGOS NA RAMPA
Foi no começo dos anos 50 que um imigrante polonês chamado Leo Sternbach foi contratado como pesquisador na sede da Hoffman-LaRoche, uma companhia farmacêutica de Nova Jersey. Os Estados Unidos do pós-guerra haviam passado a exibir considerável apetite por medicamentos de combate à ansiedade, e Sternbach estava encarregado de criar uma cópia do Miltown, o medicamento de combate à ansiedade mais popular do período. Sternbach decidiu em lugar disso dedicar seu tempo às pesquisas que o interessavam. Foram precisos quatro anos para que ele e seus colegas sentissem que haviam encontrado algo notável, e testassem o novo medicamento em ratos de laboratório, observando o comportamento das criaturas quando posicionadas no fundo de uma tela inclinada. Experiências anteriores demonstravam que os camundongos não dopados subiam pela rede com facilidade, e que os dopados tentavam subir mas caíam antes de chegar ao topo, e ficavam inertes no fundo. Com o novo medicamento, os testes demonstraram que os ratos de laboratório também caíam antes de chegar ao topo, mas se comportavam normalmente quando estavam no fundo. A descoberta do benzodiazepine por Sternbach transformaria o mundo dos soporíferos, com relação aos mecanismos simplórios usados em medicamentos anteriores.
O primeiro remédio lançado comercialmente tendo o benzodiazepine como princípio ativo foi o Librium, aprovado em 1960, mas elicpsado apenas três anos mais tarde por uma versão melhorada, o Valium, medicamento mais vendido nos Estados Unidos entre 1969 e 1980, com 2,3 bilhões de pílulas vendidas em 1978. "É um bom remédio", Sternbach disse à revista "New Yorker" na festa de 40º aniversário do Valium. "Os efeitos colaterais são agradáveis. E é bom como soporífero. Por isso os abusos. Minha mulher não me deixa usar a pílula", ele revelou.
ZZZ
A ciência dos remédios para dormir evoluiu depois do trabalho de Sternbach. O temazepam -- acompanhado por flurazepam, loprazolam, lormetazepam e nitrazepam -- é parte da categoria moderna do benzodiazepine. O zopiclone, por sua vez, é parte de um grupo de medicamentos conhecidos como "remédios Z" -- zaleplon, eszopiclone e zolpidem (mais conhecido com a marca Ambien), que não são benzodiazepines, mas operam de maneira semelhante, reduzindo o tempo de que o usuário necessita para cair no sono e prolongando o tempo de sono. O que eles têm de superior ao grupo do benzodiazepine é que não afetam a "arquitetura do sono" -- ou seja, a estrutura e padrão do sono, e a duração do sono REM e não REM. Os benzodiazepines reduzem o sono profundo, de ondas longas, e por isso não acordamos nos sentindo especialmente repousados. Nenhum dos dois grupos de medicamentos foi concebido para uso em longo prazo.
Ian Singleton, 65, é um dos dirigentes do Bristol Tranquilliser Project. O projeto ajuda a tratar 250 pessoas ao ano, cerca de metade das quais dependentes de remédios Z. Singleton mesmo se tornou dependente de benzodiazepine nos anos 80, depois de procurar um médico devido a dores de estômago recorrentes e estresse relacionado ao trabalho. "Meu clínico geral diagnosticou estresse", recorda. "Mas não me perguntou por que eu estava estressado. Só disse que me receitaria medicamentos que me ajudariam a voltar ao trabalho."
No começo, Singleton achou que os remédios talvez estivessem ajudando. "Não me senti muito mal, por um mês ou pouco mais", recorda. "Mas logo percebi que o efeito estava passando. Meu corpo doía, eu sentia dores fortes nos músculos do estômago, e sentia pânico. Sabia, depois de um ano disso, que estava viciado." O efeito foi devastador. "Tudo ficou arruinado", diz. "Não conseguia dormir, sentia ansiedade, não tinha interesse na vida, me sentia como uma bomba prestes a explodir."
Singleton decidiu que abandonaria os remédios sem ajuda, e sofreu um surto epiléptico que resultou em meses de hospitalização. "Eu não aconselho pessoa alguma a usar soporíferos", diz. "A menos que tenha passado por um evento traumático e o médico receite seu uso por três ou quatro dias." Singleton argumenta que sempre existe um motivo para que uma pessoa não consiga dormir. "Os remédios só deveriam ser receitados quanto todos os outros recursos fracassarem."
EFEITOS DA CRISE
O NHS gasta cerca de 50 milhões de libras ao ano em soporíferos. A demanda cresceu desde que a recessão começou. Em maio, o departamento de serviços de negócios do NHS, que paga aos farmacêuticos pelos remédios vendidos sob receita da organização, revelou que as receitas de soporíferos mostravam 10% de crescimento no leste da Inglaterra, nos últimos quatro anos, a um custo adicional de sete milhões de libras anuais.
É muito dinheiro para um remédio que talvez não seja tão efetivo quanto esperaríamos. Ainda que a maior parte dos pacientes consiga dormir 50 minutos adicionais por noite, em média, quando os usam, o "American Journal of Public Health" reportou que os remédios Z aumentam o tempo de sono em apenas 12 minutos. Há outras preocupações, além disso. Em fevereiro, o "BMJ Open" publicou aquele que talvez seja o mais alarmante argumento contra o uso dos soporíferos. Um estudo norte-americana comparou 10,5 mil pacientes tomando soporíferos sob receita a 23 mil pessoas que não usam remédios para dormir. Embora o risco de morte continue baixo, era quatro vezes mais elevado entre os usuários de soporíferos.
"O que o estudo traz de novo é a informação sobre o vínculo entre mortalidade e câncer em medicamentos específicos, entre os quais o zolpidem, zopiclone, outros benzodiazepines, barbitúricos e difeniramine", disse o Dr. Daniel Kripke, da clínica Scripps, na Califórnia, o pesquisador responsável pelo estudo. "Todos parecem estar associados a mortalidade seriamente aumentada. Uma das coisas perturbadoras quanto aos nossos dados é que mesmo as pessoas que consumiram menos de 18 doses ao ano já apresentam mortalidade mais alta."
Ele faz questão de enfatizar que boa parte disso foi registrado em pacientes que sofriam de outras enfermidades, tais como obesidade, o que sugere a possibilidade de que condições como essa interajam com os efeitos perigosos dos soporíferos hipnóticos. Kripke não recua quanto às implicações de sua pesquisa, no entanto. "Concluo que nenhum dos remédios que pudemos estudar é seguro o bastante para uso", ele afirma, "e portanto devem ser todos evitados, a não ser para uso ocasional".
O professor Nutt encara essa pesquisa com ceticismo. "Houve poucos indícios ao longo dos últimos 60 anos de que esses soporíferos fazem mal", ele insiste, ressabiado. "Se acho que soporíferos fazem bem? Acho. As pessoas que os criticam não tratam de pacientes com insônia, pessoas que não dormem há semanas e estão vendo a destruição de suas vidas. Insônia pode causar depressão, suicídio, uso de drogas mais perigosas, como o álcool. A insônia é uma doença perigosa."
Ele reconhece que o uso em longo prazo pode ter desvantagens. "As pessoas não se viciam em soporíferos, mas se tornam dependentes deles, e por isso podem dormir mal quando deixam de usá-los. Parte disso é químico e parte é que elas não resolveram o problema subjacente que causa sua perda de sono; estão só tratando dos sintomas, não das causas."
CAUSAS E SINTOMAS
No ano passado, a Fundação de Saúde Mental reportou que 37% das pessoas alegam sofrer de insônia e apenas 39% dizem dormir bem. Como remediar essa sensação de que dormimos pior do que deveríamos? As "oito horas de sono" mencionadas pela Nuffield Health são irrelevantes -- algumas pessoas não precisam dormir tanto assim, e outras podem precisar dormir mais. O ponto importante é descobrir o ritmo e necessidade pessoais de sono. Vale a pena recordar que a ideia de oito horas de sono ininterrupto é uma invenção relativamente recente; gerações passadas aceitavam com facilidade acordar no meio da noite, para conversar, comer ou fazer sexo. Por volta do século 19, exatamente o momento em que o sono começou a depender mais de medicação, perdemos contato com essa ideia de dois blocos de sono.
"A melhor abordagem quanto ao problema do sono é uma boa higiene do sono", diz Hall, "o que significa organizar seu sono: nada de atividades noturnas excitantes demais, nada de computador ou TV tarde da noite, exercícios ao longo do dia, às vezes algum álcool, mas sem excessos, e nada que tenha luzes de controle, apitos ou indicadores de que você recebeu novas mensagens presente no quarto".
A virada em direção de tratamentos como a TCC pretende dar mais poder aos pacientes, permitindo que assumam o controle sobre seus problemas de sono e economizem nos gastos com o uso de soporíferos em longo prazo. O Departamento de Saúde britânico diz ter reservado 400 milhões de libras nos próximos quatro anos para melhorar o acesso a esse tipo de terapia.
COMPREENDER
A TCC funciona com base na ideia de que compreender e manipular os dois processos que afetam o sono de uma pessoa -- primeiro o comportamento aprendido de passar tempo demais acordado na cama esperando o sono e segundo os pensamentos que surgem durante esse período, que podem se tornar obsessivos e sujeitos a pânico. Morgan argumenta que apenas cinco horas de TCC podem render benefícios em 70% ou mais dos casos. "A terapia propicia melhor qualidade de sono mesmo um ano depois das sessões. Trinta anos de uso de soporíferos resultaram em passividade, na ideia de que esse problema está fora de nosso controle."
Esse é um objetivo positivo. Afinal, não se trata apenas de saúde, de risco ampliado de mortalidade, derrames e obesidade, mas também de determinar se queremos viver nossas vidas como os ratos de laboratório de Sternbach, sempre caindo, sonolentos, ao tentarmos subir.
Mesmo assim, os soporíferos talvez não sejam tão demoníacos quanto os imaginamos por tanto tempo. Podem representar uma ferramenta vital para as pessoas que sofrem de insônia crônica ou uma solução simples para impedir que um período de sono perturbado se torne problema mais grave. Como dizia a faixa estendida por sobre as cabeças dos participantes na festa de 40º aniversário do Valium, "obrigado pela felicidade e relaxamento desses anos todos".

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