Ideal socialista de imigrantes italianos foi a matriz dos movimentos sociais no país.

Roberto Nicolato

Passados mais de 100 anos da principal experiência anarquista da América Latina, os caminhos que levam ao passado vão desembocar numa porteira fechada com cadeado. Da antiga Colônia Cecília, implantada por um grupo de imigrantes italianos idealistas no município de Palmeira, restaram apenas histórias, fábulas que se confundem com a realidade. Até mesmo a única fotografia da colônia tem a sua autenticidade contestada.

O que é fato inegável é que a Colônia existiu e foi implantada numa região conhecida como Santa Bárbara de Cima, a 30 quilômetros da Palmeira. O local é hoje uma fazenda de médio porte de propriedade do oftalmologista Wilson Artuzi, que reside em Curitiba. Ele é neto de Aniceto Artuzzi, um dos anarquistas que vieram para o Brasil acreditando nos ideais utopista de Giovanni Rossi.

Antes de chegarmos ao local da Colônia, por uma estreita estrada de terra, os moradores da região já haviam nos alertado de que a entrada na fazenda seria uma missão totalmente impossível, o que realmente ocorreu. O caseiro que mora numa casa ao lado custou para nos atender e adiantou que estava instruído para barrar qualquer um que se atrevesse a entrar no local. Ligamos então para o proprietário em Curitiba e ele foi taxativo na sua negativa.

O que se sabe com certeza é que naquela fazenda, de 125 alqueires, o que restou da época da Colônia Cecília foi um velho poço, coberto por madeira e forrado de pedras. No Museu Histórico de Palmeira não há qualquer documento ou foto sobre a história da experiência anarquista, embora a prefeitura tenha planos de erguer um memorial na região onde viveram aqueles imigrantes italianos.

O caminho para se chegar à experiência socialista da Colônia Cecília está nos livros e filmes (ver matéria abaixo) ou nas histórias ouvidas por alguns dos descendentes dos imigrantes italianos, como é o caso de dona Ivone Agottani, 78 anos, neta dos casais Tranquilo e Adele Agottoni e Aniceto e Maria Artuzi, que chegaram à Colônia numa segunda leva.

"Meu avô Tranquilo e minha avó Adele moravam na Itália na região de Emilia Romana. Ele era tenor e ela soprano e cantavam nas igrejas. Eles se revoltaram contra a exploração do homem pelo homem, romperam com a Igreja, e decidiram vir para a América do Sul, mas não eram ateus", conta Ivone Agottani.

A família Agottani embarcou no Porto de Gênova no dia 15 de novembro de 1890, junto com mais de cinqüenta pessoas, chegando na Colônia Cecília em 1.º de janeiro de 1891. Na Colônia eles foram recepcionados pelo grupo de sete imigrantes, liderados por Giovanni Rossi, que já estavam no local desde o dia 2 de abril de 1890. Ivone Agottani diz que entre os novos colonos estavam alfaiates, médicos, sapateiros, gente de diploma que teve de trabalhar na roça. O próprio Giovanni Rossi era formado em Agronomia e Veterinária.

"O Rossi trouxe muitas mudas frutíferas da Itália, as famílias compraram uma vaca, porcos, plantaram milho e verduras. A produção era coletiva. Vieram grupos das províncias da Lombardia, Toscana, Piemonte e Emilia Romagna e todos eram recebidos com muita alegria", conta Ivone ao relatar o que ouviu dos antepassados. "A comida era polenta, omelete com cebola e salada de radiche".

A experiência anarquista, no entanto, durou apenas quatro anos. E foram muitos os motivos que contribuíram para a dissolução da Colônia. Com o advento da República, os imigrantes tiveram que pagar as terras que haviam sido doadas pelo imperador dom Pedro II; e para complicar ainda mais a vida das famílias, um espanhol que foi aceito na comunidade levou todo o dinheiro da venda do milho, a principal fonte de renda na Colônia Cecília. O espanhol roubou cinco mil reis e um fuzil velho.

"O que sobrou depois foi destruído pelos federalistas", diz Ivone. Desiludidas, muitas famílias acabaram indo para a região de Canta Galo e Santa Bárbara de Baixo, como os Agottani e Mezzadri. Giovanni Rossi acabou deixando a Colônia para trabalhar Blumenau em Santa Catarina e como professor de Agronomia no Rio Grande do Sul.

Quem também gosta de contar histórias sobre a Colônia Cecília é Orestes Agottani, 93 anos, neto de Tranquilo Agottani e o último dos anarquistas. "Eu nunca pratiquei, mas sempre fui fiel à causa socialista. Alguém já me viu entrar numa Igreja?", pergunta Orestes que nem sempre consegue lembrar dos fatos com muita precisão. Ele prefere entender os acontecimentos da vida à luz da ciência e lembra que os imigrantes que passaram por aquela experiência "cultivaram seus ideais até a morte".

Na memória de Orestes ficou também o conflito que havia entre os italianos e os poloneses vizinhos de terreno. "Eles não sabiam ler e eram muito religiosos. Certa vez não deixaram que uma criança fosse enterrada no cemitério de Santa Bárbara. Foi criado inclusive o cemitério dos renegados, tal era o preconceito". Darvino, filho de Orestes, conta que para os poloneses era um escândalo os italianos trabalharem aos domingos e feriados. Era difícil para as pessoas comprender o idealismo daqueles homens que buscavam uma sociedade justa, que não se apoiava em nenhum poder constituído, mas apenas nos laços da fraternidade.

Mas o passado ficou para trás "e hoje, nessa terceira geração, nos damos muito bem com os descendentes. Somos como irmãos", avisa Darvino.

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