A Corte no Exílio



Desde que se confirmaram os bons augúrios de que a porção da frota onde viajava o príncipe-regente havia desembarcado sã e salva na capital da Bahia, a cidade do Rio de Janeiro parece ter entrado num transe misto de curiosidade, expectativa e correria com os preparativos para a recepção da augusta família. Parte dela (com as princesas, irmãs da rainha demente) já havia chegado desde 17 de janeiro por força da tempestade que levara o príncipe direto a Salvador. Ao romper do dia 7 de março de 1808, o Rio de Janeiro era frenesi e confusão. Conta-se que toda atividade, pública e particular, fora suspensa, as lojas fechadas e as casas esvaziadas, já que todos os habitantes correram para a praia ou para os outeiros, e até mesmo aos telhados para se assistir ao esquisito espetáculo. A rigor, a cerimônia do desembarque pode ser entendida como uma síntese antecipada dos 13 anos seguintes, período em que a família real residiu na capital do Brasil. O cenário, os personagens e suas ações já ali se fizeram plenamente presentes.
O palco do espetáculo da Corte no Brasil constituía-se naquela cidade ímpar que era o Rio de Janeiro, capital de uma ex-colônia que acabava de se abrir para o mundo. Tinha ainda as feições rudes de porto colonial, com suas linhas maltraçadas, suas ruas estreitas e fétidas, suas habitações mal-arejadas e soturnas, sua população maciçamente negra e parda. Mas a natureza generosa fazia prender o fôlego a todos os viajantes e aventureiros que ali chegavam, e que não cansaram de lisonjear o entorno exuberante, a mata abundante, a baía cercada de montanhas ciclópicas que miravam para o mais azul dos céus, as praias das areias mais brancas bombardeadas pelo sol tropical. Com a chegada dos distintos adventícios, o colorido natural foi amplificado pelas infinitas bandeiras, flâmulas e pavilhões das naus, de guerra e mercantes, que não cessaram mais de chegar e que congestionavam a bela baía; colorido, também, que pendia das varandas dos sobrados, com as colchas de cetim e damasco, muitas vezes mandadas pendurar por decreto; o colorido aromatizado das flores que se mandavam jogar ao passar o séqüito real para que se alcatifassem as ruas malcheirosas da cidade pantanosa onde os dejetos domésticos corriam a céu aberto ou eram atirados às praias em ombro escravo; colorido, por fim, das velas de cera e das girândulas, luminárias e fogos de artifício que clareavam a noite. A presença real, no dizer do cronista, lisonjeava não apenas os olhos, mas também os ouvidos, com as inúmeras salvas de canhões das naus e fortalezas, os incessantes repiques de sinos e salvas de artilharia, que chamavam a população para os reais festejos. O Rio de Janeiro de d. João foi uma festa só, que começou com o desembarque e que acionava todos os sentidos.
Além dos protagonistas e da população que fazia o papel de platéia, os personagens se apresentaram todos ali, logo ao desembarque, que se deu por volta das 4 horas da tarde do dia 8 de março, uma tarde generosamente aprazível para essa época do ano costumeiramente escaldante. Por um ardil da história, desembarcava nos trapiches fluminenses uma típica sociedade de corte de antigo regime europeu, com seu rei absoluto, corte e Estado. E cada valete desse baralho sabia perfeitamente qual seu lugar e valimento. A luta para alcançar maiores e melhores lugares e benesses era cruenta; os residentes fluminenses, particularmente seus estratos mais abastados, ligados ao comércio internacional, ao tráfico de escravos e ao sistema de crédito, viram-se irresistivelmente atraídos pelo brilho da Corte e logo se meteram nessa guerra palaciana. Tinham aquilo de que o rei e seu Estado tanto precisavam naquela circunstância heróica, em que singraram o oceano para salvar o corpus místico do soberano: tinham l’argent, com o qual socorreram as diversas urgências do rei, que em reconhecimento paternal lhes retribuiu com cargos e distinções.
O desembarque da real comitiva é descrita pelos panegiristas como uma quase epifania, catártica, arrebatadora. Mas fato é que a primeira coisa que fizeram o rei e seu séqüito foi porem-se de joelhos, prostrados, diante de um altar ali improvisado, onde beijariam a cruz e receberiam as devidas bênçãos do cabido da catedral. Após todas as aspersões e turificações, saiu a procissão rumo à improvisada Sé, na ocasião a igreja dos pretos do Rosário, onde então funcionava provisoriamente o cabido. Nada mais eficaz do que uma procissão para colocar cada um no seu devido lugar. Numa sociedade de corte, quanto mais próximo do rei, mais alto na escala social – e mais facilmente objeto das reais mercês. Por isso, será muito revelador observar quem eram aqueles personagens importantes, que surgem logo nas cenas das primeiras ações do rei em terra firme; aqueles que, por exemplo, seguravam as varas do pálio de seda sob o qual se recolheram os membros da família real, para, por entre as fileiras de soldados dispostos ao longo da Rua Direita, tomarem o rumo da catedral, onde culminaria a cerimônia do desembarque com os te deum, orações e beija-mão real. Seguiram-se nove dias de luminárias.
Tem-se notícia de que os escolhidos para segurarem as varas do pálio de seda de ouro encarnada sob o qual ficariam as reais pessoas foram o presidente do Senado da Câmara, acompanhado de alguns “homens bons” da cidade, entre os quais Francisco Xavier Pires, Manuel Pinheiro Guimarães e Amaro Velho da Silva.
A imprensa régia publicou em Lisboa uma interessante “relação das festas” realizadas no Rio de Janeiro quando da chegada da família real, na qual se ajuntam algumas “particularidades igualmente curiosas e que dizem respeito ao mesmo objeto”, onde se dá conta das “ações” encetadas por alguns desses personagens centrais do teatro da Corte joanina no Brasil. Dentre essas “ações”, ganhará realce essa espécie de simbiose que se estabelecerá entre os dignitários maiores da terra, os grandes argentários da praça mercantil do Rio de Janeiro, e o rei, no cume da sociedade de corte migrada. A primeira “particularidade curiosa” mencionada naquela relação das festas de 1808 refere-se à doação que fez Elias Antônio Lopes, negociante de grosso trato estabelecido na praça do Rio de Janeiro, da quinta da Boa Vista em São Cristóvão, que passou a ser a residência oficial de d. João e seu retiro preferido. Conta-se que, quando nela entrou pela primeira vez, S. A. R. confidenciou ao negociante que o acompanhava: “Eis aqui uma varanda real, eu não tinha em Portugal cousa assim.” Não se sabe se de fato disse semelhante frase o príncipe-regente, nem se, tendo dito, se expressasse sinceramente. Mas consta que o rei recompensou o negociante com diversas mercês, nomeando-o de plano comendador da Ordem de Cristo e administrador da mesma quinta.
Era o conselheiro Elias Antônio Lopes um dos maiores argentários da praça mercantil do Rio de Janeiro. À época de seu falecimento, sua fortuna estava aplicada, sobretudo, em negócios mobiliários, que somavam mais de 34 contos de réis, dívidas ativas que giravam em torno de 40 contos de réis e, a maior parte, investimentos em atividades comerciais diversas que ultrapassavam os 100 contos de réis. Seu capital total, computados todos os bens móveis e viventes, trastes, roupas, chegava a quase 236 contos de réis, uma fábula para a época. Possuía ainda 110 escravos, avaliados em quase 9 contos de réis. O presente ao príncipe foi um investimento que certamente não abalou o orçamento do potentado.
A partir da doação da real quinta da Boa Vista a d. João, os laços de amizade entre ambos se estreitaram, assim como se fortaleceram as influências do comerciante. Falecido em 1815, acumulou Elias Antonio em sete anos de vida ao pé do trono, ou a seu lado direito, inúmeros cargos e patentes, cargos na administração pública e foros de fidalguia, capital simbólico maior numa sociedade de corte.
Tanto Elias Antonio Lopes como Francisco Xavier Pires, Manuel Pinheiro Guimarães e Amaro Velho da Silva figuram entre as maiores fortunas do Rio de Janeiro desde o começo dos anos 1790, todos eles nomes capitais do tráfico negreiro. Como Lopes, os outros três traficantes doaram grandes somas para as causas do rei. Os três primeiros constam na lista de subscrição (espécie de “livro de ouro”) aberta logo em 1808 por d. Rodrigo de Sousa Coutinho e Manuel Caetano Pinto para salvar as urgências do Estado. Em menos de 30 dias essa primeira lista amealhou mais de 26 contos de réis. Amaro Velho, junto com os traficantes da família Leão (herdeiros de Brás Carneiro Leão, morto em 1808, que era pai de Fernando Carneiro Leão, o todo-poderoso intendente da polícia da Corte), o mesmo Manuel Caetano Pinto e outros potentados doaram uma pequena fortuna aos cofres públicos em 1808, para se levantar uma fábrica de pólvora. Tais doações não eram exatamente atos patrióticos desinteressados. Cada um desses nomes amealhou muitas benesses reais, tais como cargos burocráticos (na diretoria do recém-fundado Banco do Brasil, ou na arrematação de impostos, por exemplo, ambos altamente rentáveis), patentes militares, foros de fidalguia (como os hábitos das diversas ordens militares e religiosas), lugares no conselho de Estado e uma infinidade de liberdades, isenções, privilégios e franquias para tocarem seus negócios sem maiores embaraços.
Eis como um aparentemente singelo acontecimento, por mais excepcional que seja, pode revelar muito das entranhas de uma sociedade, aquilo que lhe explica seu passado e projeta seu futuro. Ali, logo no ato único e memorável do desembarque de um príncipe regente europeu em solo tropical, começava a se desenhar o perfil da classe de homens que estabeleceram uma relação de trocas – muito mais que simbólicas – com o rei durante seus anos no Rio de Janeiro.
A cidade nunca mais seria a mesma, nem o país que ali começava a nascer. Quando do regresso do soberano a Portugal em 1821, serão os prepostos desses potentados que, cooptando o príncipe d. Pedro para sua causa, darão curso à independência. E serão esses mesmos potentados que tomarão em suas mãos o trabalho de construção do Estado e da nação ao longo do século 19, à sua imagem e semelhança e em seu benefício.
* Jurandir Malerba é professor da Unesp e autor, entre outros, de A Corte no Exílio (Companhia das Letras) e organizador de A Independência Brasileira (Editora da FGV)

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