Tiradentes Esquartejado, 1893, Pedro Américo de Figueiredo e Melo




Tiradentes Esquartejado, 1893, Pedro Américo de Figueiredo e Melo (Pintor Brasileiro, 1843-1905), óleo sobre tela, 270 x 165 cm, Museu Mariano Procópio, Juiz de For a (MG), Brasil


Único quadro que restou da série sobre a Inconfidência, “Tiradentes supliciado”, de Pedro Américo, despreza a visão triunfante de um “imprudente conspirador”


Maraliz de Castro Vieira Christo

“Qualquer pessoa que não conheça a fisionomia do Tiradentes apenas verá nessa tela um açougue de carne humana. O artista dirá, talvez, que foi fiel à história; pois sim, mas que quer dizer isso?” A indagação do professor de estética da Escola Nacional das Belas Artes, Carlo Parlagreco, quando da exposição do quadro “Tiradentes esquartejado” no Rio de Janeiro, em julho de 1893, ainda ecoa no espanto dos visitantes do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora (MG), ao se depararem com a obra mais original do pintor Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1895).
Sabemos que o artista fez estudos a óleo para uma série de quadros sobre a história da Conjuração Mineira, mas apenas “Tiradentes supliciado” – hoje conhecido como “Tiradentes esquartejado” – foi transformado em tela definitiva.
 Durante o século XIX, o trabalho de um pintor de história pautava-se pelo equilíbrio entre a fidelidade ao tema, as necessidades ditadas pela estética e os valores de seu tempo. Como o historiador que escolhe os fatos do passado e a forma de analisá-los, silenciando ante outros, o artista escolhe como e em que momento deve representar seu personagem. Pedro Américo, mal a recém-proclamada República (1889) começava a erigir seu mártir, optou por apresentar-nos um herói aos pedaços. Por quê?

 A hipótese de o quadro espelhar o descontentamento do pintor face à  própria vida pode ser levantada. Pedro Américo se sentia envelhecido e doente; com a República, perdera sua posição de pintor oficial do Império e fora aposentado da Academia das Belas Artes em 1890. O quadro também poderia refletir suas preocupações com as dificuldades de implantação do novo regime político. Difícil saber suas motivações pessoais. É mais proveitoso tentar compreender o processo de criação desse quadro tão singular.
 

Com a proclamação da República, Pedro Américo foi eleito deputado pela Paraíba, sua província natal. Por força de um mercado de arte insignificante no Brasil, o artista tentará recuperar o apoio do Estado às artes, abalado com a queda do Império. Apresenta então um projeto de lei para a criação de uma Galeria Nacional de Belas Artes, desvinculada da Escola Nacional de Belas Artes. Em 1892, ano do centenário da morte de Tiradentes, decide executar por conta própria a série sobre a Conjuração Mineira, na expectativa de ver esses quadros incorporados, em um futuro próximo, à Galeria Nacional que acabou não sendo criada. 
 

Imagem de mártir, perfil de herói

Adriana de Oliveira

Sua história é bem conhecida: um alferes e dentista mineiro condenado e executado pela Coroa portuguesa em 1792 por lesa-majestade. Seu crime: liderar um movimento pela Independência do Brasil. Sua punição: enforcamento, esquartejamento e exposição pública das partes de seu corpo.

A representação iconográfica mais original de Tiradentes - o imenso quadro pintado em apenas 12 dias por Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905) em 1893, única obra que apresenta o inconfidente enforcado e aos pedaços - ficou "esquecida" por quase um século. Foi desprezada nos momentos em que a história lançou mão do mito de Tiradentes, como no início da República, no governo Vargas e na ditadura militar. A imagem "escolhida" para representar Joaquim José da Silva Xavier no panteão nacional foi a de um homem de cabelos longos e túnica branquíssima, pintada por Décio Villares (1851-1931) em 1890. Em sua tese em história da arte, Maraliz de Castro Vieira Christo analisa a produção, a circulação, a recepção e as releituras da tela Tiradentes esquartejado para compreender seu longo período de esquecimento e recente descoberta, a partir de dois momentos privilegiados de visibilidade - a XXIV Bienal de São Paulo (1998) e a Mostra Redescobrimento do Brasil + 500 anos (2000), ambas em São Paulo.
Apesar de ter sido realizada por um pintor oficial do Império - principalmente por Independência ou morte (1888), que, ao lado de Primeira missa no Brasil (1861), de Victor Meirelles (1832-1903), tornou-se um dos principais símbolos da pintura histórica nacional -, a tela Tiradentes esquartejado foi rejeitada pela crítica em sua primeira exposição no Rio de Janeiro, no ano de sua aparição (1893).

Nela, o artista dispôs o corpo do herói, representado praticamente em tamanho natural, desmembrado em quatro partes, adornado por grilhões, corda e crucifixo. Posicionado aos pés do mártir, o observador vê a alva que destaca o corpo do cadafalso, a túnica azul que o reintegra ao fundo celeste, ao mesmo tempo que o distancia da perna direita espetada em uma haste de madeira, em primeiríssimo plano. Para conferir maior dramaticidade à cena, Pedro Américo coloriu áreas precisas com sangue, que atraem o olhar tanto para a cabeça e a perna espetada quanto para as linhas delicadas do tronco e da perna sobreposta.

Desde 1893 até a década de 70, quando passou ser reproduzida em enciclopédias e livros didáticos, a tela foi considerada desrespeitosa, sendo por isso evitada. O silêncio sobre a obra foi quebrado em 1975 por Pietro Maria Bardi em História da arte brasileira: pintura, escultura, arquitetura e outras artes e apenas em 1990 ganhou uma análise mais detalhada pelo historiador José Murilo de Carvalho em A formação das almas: o imaginário da República no Brasil.

Além de percorrer a fortuna crítica e os usos políticos do quadro de Pedro Américo, Maraliz desenha o contexto em que ele foi concebido e compara o trabalho do artista ao do historiador em sua busca de equilíbrio entre a veracidade histórica e a liberdade de criação. Para pintar Tiradentes esquartejado, Pedro Américo pesquisou vários autores, fiando-se principalmente na obra do historiador Joaquim Norberto de Souza e Silva (1820-1891), História da Conjuração Mineira: estudos sobre as primeiras tentativas para a independência nacional, de 1873, indicação do diplomata José Maria da Silva Paranhos Júnior (1845-1912), o barão do Rio Branco, de quem o artista era amigo e com quem trocou extensa correspondência sobre pintura histórica.
O quadro não foi concebido por Pedro Américo como uma pintura isolada, mas como parte de uma narrativa sobre a precariedade da Conjuração Mineira. Inacabada, a série se constituiria de outras telas: Tomás Antônio Gonzaga representado como um anti-herói a bordar, e não como líder intelectual do movimento, pois na prisão o poeta teria negado seu envolvimento com a conjura, dizendo-se ocupado em bordar a fio de ouro o vestido nupcial de sua Marília; a mais importante das reuniões dos conjurados, onde estes, reticentes, ouvem Tiradentes; a cena da constatação da morte de Cláudio Manuel da Costa, em que o pintor não se decide pelo suicídio ou pelo assassinato do poeta, e evidencia a fragilidade do inconfidente morto por ter denunciado os amigos; a prisão de Tiradentes numa casa antiga à rua dos Latoeiros, preâmbulo à cena do esquartejamento; e, por fim, um Tiradentes supliciado.

A análise do quadro, que tanto pode fascinar quanto repugnar, abre um debate atual na historiografia da arte: a representação do corpo humano e do herói. Nas releituras da obra de Pedro Américo, vários artistas desprezaram a interpretação de Tiradentes como herói e sua tradicional sacralização como citação explícita da Pietà (1499) de Michelangelo (1475-1564), para enfatizar sua violência. Arlindo Daibert (1952-), na série de desenhos Açougue Brasil, de 1978, e Sandro Donatello Teixeira (1945-), em O massacre de Tiradentes, de 1976 e 1992, isolaram a perna espetada para transformá-la numa metáfora da tortura dos anos 70. Ao agigantar o cadafalso e a forca visando evidenciar a fragilidade do corpo de Tiradentes, em Mantenha a liberdade quae sera tamen, de 1979, Wesley Duke Lee (1931-) também alinha o conteúdo da tela do artista à cena da ditadura militar. Na instalação Reflexo de sonhos no sonho de outro espelho, de 1998, Adriana Varejão (1964-) satura o olhar com fragmentos do corpo do inconfidente, refeito em manequim e desfeito em reflexos, aludindo à despersonificação do homem. 

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