Linha de trem chega ao Contestado, expulsa caboclos e dá início a uma guerra

Leonencio Nossa e Celso Júnior, O Estado de S. Paulo


Eles eram crianças quando, em 1912, tropas do Exército e agentes policiais desembarcaram nos sertões de Santa Catarina e Paraná para combater seus pais, mães, tios e avós que pegaram em facões de pau e velhas espadas farroupilhas e julianas, num movimento contra o projeto de uma ferrovia em suas posses de terra e os desmandos de lideranças emergentes da República, proclamada duas décadas antes.


Prisioneiros. Em 1910, a Brazil Railway Company, subsidiária da holding Lumber Company, criada pelo empresário norte-americano Percival Farquhar, concluía a construção do trecho da ferrovia São Paulo- Rio Grande do Sul no território disputado por Santa Catarina e Paraná, o Contestado. Quatro mil ex-detentos e miseráveis de Santos, Rio de Janeiro e São Paulo recrutados para as obras foram demitidos e expulsos de cabanas de palha levantadas nas margens da estrada.

A Lumber conseguiu concessão do governo para explorar pinhos e imbuias nos 15 quilômetros de cada lado da ferrovia. Os renegados engrossaram redutos formados por caboclos nativos que, por orientação de monges andarilhos, pregavam nos desertos sulistas a chegada do exército celeste de São Sebastião, chefiado por uma tropa de elite chamados de os "Pares de França", figuras de histórias medievais reproduzidos em folguedos de origem portuguesa e folhetins.

As "cidades santas", abertas em clareiras da mata do Planalto Catarinense, abrigavam ainda soldados "maragatos" opositores do governo Floriano Peixoto derrotados por tropas legais, de 1893 a 1895, e pequenos comerciantes e proprietários de terras opositores dos novos coronéis da recém proclamada República. O Contestado foi uma aliança inesperada e explosiva do caboclo simples do oeste, do político derrotado e magoado do Rio Grande do Sul, do ex-presidiário e do braçal sem rumo do Rio de Janeiro e de São Paulo. Brasileiros com qualidades, defeitos e dramas pegavam em armas. Só maquiados serviriam, mais tarde, de exemplo para grupos políticos.

A guerra dos jagunços, como o conflito foi chamado pelos caboclos, ou dos fanáticos, na designação dos militares, não teve relação direta com a disputa entre os governos paranaense e catarinense pelo território dos campos de Irani e Palmas, uma área que poucos anos antes era reivindicada pela Argentina. Somente em tempos mais recentes que pesquisadores passaram a chamar a revolta de Guerra do Contestado.

O estopim da revolta ocorreu em 22 de outubro de 1912, quando o capitão João Gualberto Gomes de Sá Filho, do Regimento de Segurança do Paraná, na liderança de 50 homens a cavalo e 200 a pé, atacou um grupo de caboclos que estavam em volta do monge José Maria de Jesus, em Irani, Santa Catarina. Antes da batalha, no deslocamento até Irani, os militares tinham perdido sua principal arma, uma metralhadora "Maxim", durante a travessia de um rio. O próprio João Gualberto teria matado o monge, reconhecendo-o por um boné de pele de onça. O militar foi retalhado a facão pelos rebeldes.

Batalha entre grupo de cablocos e um coronel militar foi o estopim para o conflito que deixou milhares de mortos

Gualberto virou um novo Moreira César - oficial morto pelos conselheiristas de Canudos. A morte de Gualberto deixou em pânico autoridades de Curitiba, Florianópolis e Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, a notícia da morte de José Maria, no mesmo combate, correu pelos campos de araucária juntamente com a ideia de que o religioso ressuscitaria. Surgiam as "cidades santas", comandadas por "virgens" de 14 e 15 anos, que repassavam para os homens as "instruções" recebidas em visões do monge. A primeira delas foi Taquaruçu, organizada por um pequeno comerciante, Eusébio Ferreira dos Santos. Uma neta dele, Teodora, dizia conversar todas as tardes com o monge José Maria.

Aos poucos, o movimento exclusivamente religioso ganhou contornos de guerrilha. Era a luta dos pelados (caboclos) contra os peludos (militares). Os facões de guamirim, madeira dura encontrada na região, esculpidos no fogo eram substituídos por armas de aço tomadas de fazendeiros, soldados e oficiais em combates na Serra da Esperança, no oeste catarinense. Winchesters, revólveres e espadas usadas na Revolução Farroupilha (1835-1840), na proclamação da República Juliana (1839) e na Revolução Federalista (1893-1895) voltavam a ser usadas em batalhas. As práticas da degola, do fuzilamento de prisioneiros e das mutilações de orelhas, assombrações das velhas guerras gaúchas, também foram reutilizadas.



A 12 de setembro de 1914, Setembrino de Carvalho assumiu o comando da 11ª Região Militar, com sede em Curitiba. Ele tinha por missão chefiar a operação de massacre dos caboclos. Este caderno descreve a campanha de Setembrino. Entre o final de dezembro de 1914 e começo de abril de 1915, o Contestado viveu o auge da guerra. Dos 18 mil homens do Exército, sete mil estavam na região. A estimativa de dez mil mortos, levantada desde o fim do conflito, não foi derrubada por novos estudos publicados. É praticamente o dobro de mortes registradas na Guerra de Canudos, na Bahia, em 1897.

Baixas. Uma análise de 76 relatórios da campanha do general Setembrino indica que, nos cem dias decisivos da guerra, cerca de 1.500 a 2 mil rebeldes morreram. A avaliação sobre os números apresentados pelos comandantes nos documentos deve levar em conta as tentativas dos militares em dar um caráter "épico" a suas ações e justificar o tamanho das tropas e a quantidade de armas e suprimentos para reprimir os caboclos. Em quatro anos de guerra, portanto, o número de mortos pode ter sido bem inferior aos dez mil registrados em estudos.


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